MP 1.202/2023 é inaceitável violência contra o Legislativo, o Judiciário e os contribuintes

Fonte: https://www.conjur.com.br/2024-fev-21/a-mp-1-202-2023-e-uma-inaceitavel-violencia-do-executivo-contra-o-legislativo-o-judiciario-e-os-contribuintes/

 

“O princípio da segurança jurídica é um princípio-condição, garantidor, de um lado, de um estado de respeitabilidade dos direitos fundamentais do cidadão-contribuinte e, de outro lado, de um ideal de moderação da atuação estatal.” (Humberto Ávila, in Teoria da Segurança Jurídica, 6ª ed. P. 748).

 

Enfim passados o longo mês de janeiro e o arrastado momesco fevereiro, recomeçaram os trabalhos legislativos e o Congresso Nacional não poderá ficar inerte e passivo a (mais uma) gravíssima provocação do Poder Executivo: a Medida Provisória 1.202, de 28 de dezembro de 2023.

Exclusivamente voltada para buscar recursos para financiar o incorrigível déficit fiscal, a MP 1.202 é uma inaceitável violência do Executivo, sem disfarce e com sua costumeira arrogância acusativa contra os contribuintes e contra a independência dos Poderes Legislativo e Judiciário, além de ferir de morte a segurança jurídica do empresariado, destruindo qualquer possibilidade de se prever e planejar negócios no país.

 

Desprezo pela vontade popular
primeira violência cometida pela MP 1.202 foi contra o Poder Legislativo. Diretamente contra seus membros, indiretamente contra seus representados. Ao acintosamente ressuscitar, dois dias depois da derrubada integral do veto, a reoneração da folha de salários, o Executivo contrariou a vontade soberana e amplamente majoritária do parlamento — o veto havia sido derrubado por 378 a 78 na Câmara e 60 a 13 no Senado — que reconheceu e respondeu aos anseios da sociedade, contrários à elevação da carga tributária sobre os setores que mais empregam no país. O Executivo agiu sorrateiramente, à sorrelfa, sem aviso prévio, no apagar das luzes de 2023, com desprezo e menoscabo à expressão da vontade popular.

Do ponto de vista técnico-jurídico trata-se, indiscutivelmente, de medida provisória desprovida dos requisitos de relevância e urgência exigidos pelo artigo 62 da Constituição, justamente em razão da preexistência de regramento legal sobre a matéria, como reconhecido pelo Plenário do STF no julgamento da ADI 7.232, realizado em novembro de 2022.

Com efeito, naquela ocasião, a relatora ministra Cármen Lúcia considerou ser inconstitucional a MP 1.135/2022, precisamente por entender que, “(…) tendo havido legislação específica sobre a matéria (…) não sobra espaço de atuação válida do Poder Executivo em sobreposição àquela do Poder Legislativo”.

Do ponto de vista político o anticlímax é tão evidente que ao Executivo só resta se retratar – como se tem noticiado nos últimos dias – e deixar a discussão da eventual reoneração para um projeto de lei específico sobre o tema.

Aliás, seria uma ótima oportunidade para que o atual Executivo – de tantas pretensões reformistas tributárias sempre de viés arrecadatório e, até agora, nenhuma na direção da imprescindível reforma administrativa – aproveite o ensejo para corrigir seu arroubo autoritário e dê início à reforma das contribuições da seguridade social incidentes sobre os empregadores, a causa das mais graves distorções do sistema tributário nacional.

Trazer a discussão para o âmbito de um projeto de lei específico, de forma madura e contextualizada, com estudos técnicos e amplo debate público, que tome em consideração as implicações e custos de se financiar a seguridade social tributando as remunerações dos trabalhadores e se discutam modelos alternativos, evitaria o constrangimento da devolução da MP 1.202/2023, única saída que resta ao presidente do Congresso Nacional diante do tamanho desrespeito com o legislativo que foi a edição da MP 1.202 ressuscitando matéria objeto de veto derrubado  dois dias antes.

 

Direito de compensação foi destroçado
segunda violência cometida pela MP 1.202 foi contra o Poder Judiciário e os contribuintes que se beneficiavam de decisões autorizativas de compensações tributárias.

Conquanto prevista desde a versão original no artigo 170 do Código Tributário Nacional (CTN), a figura da compensação tributária apenas começou a ganhar relevância com o advento da Lei nº 8.383, de 1991, que passou a prevê-la em seu artigo 66, permitindo sua realização entre tributos, contribuições federais, inclusive previdenciárias, e receitas patrimoniais da mesma espécie.

Foi longa e turbulenta a evolução legislativa e jurisprudencial sobre a matéria ao longo da primeira década dos anos 1990.

Finalmente a questão firmou-se no plano legal em 1996, no artigo 74 da Lei nº 9.430, que, mesmo assim, acabou sendo objeto de diversas alterações para disciplinar a dinâmica procedimental e delimitar o próprio conteúdo material dos indébitos suscetíveis de serem compensados.

O próprio CTN também recebeu um novo artigo, o 170-A, com o objetivo de impedir que a compensação fosse iniciada com amparo em liminar, ainda no curso do processo judicial, isto é, antes do trânsito em julgado da sentença que reconhecesse o caráter indevido dos pagamentos realizados pelos contribuintes.

Mesmo que aos “trancos e barrancos”, é inegável que a compensação tributária foi uma grande evolução, uma solução de equilíbrio nas relações entre Fisco e contribuintes, e tornou-se uma realidade para todas as empresas, seja em razão da utilização de créditos oriundos de indébitos provenientes de processos judiciais, seja em razão de recolhimentos cujo caráter indevido foi reconhecido pela administração ou decorreu de erro do próprio contribuinte.

Com o direito de compensação – sujeita  a ulterior homologação pelo Fisco – as empresas passaram a resolver seus indébitos de forma expedita, sem sacrificar o fluxo de caixa, e no caso de processos judiciais federais, sem ficar na longa fila de espera dos precatórios, foi decretado o fim do amargo solve et repete.

Lamentavelmente essa solução de equilíbrio foi destroçada pela MP 1.202.

Pensando exclusivamente em seu próprio fluxo de caixa, o Executivo com uma canetada fixou limites máximos mensais e, por conseguinte, estabeleceu arbitrariamente, em função de uma tabela de valores, prazos mínimos para a compensação de créditos tributários objeto de decisões judiciais transitadas em julgado. Mas o mais grave é que esse novo regime está sendo aplicado, sem distinção, sem ressalvas, a compensações em curso de execução, atingindo de forma odiosa situações já definitivamente constituídas.

Ora, tendo os contribuintes suas decisões transitadas em julgado, com os créditos devidamente habilitados para compensação, com os valores registrados e aprovados nos respectivos orçamentos e nos planos de investimentos, a súbita criação de uma obrigação, sem aviso prévio, de terem de passar a observar um teto máximo, que os obrigarão a realocar recursos financeiros para fazer frente ao pagamento de tributos que seriam integralmente objeto de liquidação por compensação é uma gravíssima afronta à segurança jurídica, à proteção da confiança no Estado, que está dispondo de forma leviana do direito de propriedade do particular, tratando o cidadão contribuinte como mero objeto, para usar a impressiva imagem do professor Humberto Ávila [1].

A aplicação da nova sistemática limitativa às compensações em andamento de casos transitados em julgado viola não só a segurança jurídica, mas a própria coisa julgada, no sentido em que a sua efetividade, isto é, o efeito útil da sua eficácia, está sendo indevidamente limitado, tolhido, por uma reles e subalterna portaria ministerial de inconstitucional aplicação retroativa.

Como pode o empresário planejar, como pode realizar projetos de longo prazo, como pode realizar investimentos em um país em que as decisões judiciais não são respeitadas pelo executivo?

Extinção do Perse
terceira violência cometida pela MP 1.202 foi contra os contribuintes que confiaram e aderiram ao Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), veiculado pela Lei nº 14.148, de 2021, que tem como principal objetivo mitigar as perdas do setor de eventos, decorrentes das medidas de isolamento adotadas no Brasil para enfrentamento da pandemia da Covid-19.

A lei de iniciativa do parlamento concedeu, entre outras providências, o benefício fiscal de redução a zero das alíquotas de PIS, Cofins, IRPJ e CSLL sobre os resultados obtidos pelo prazo de 60 meses.

Sucede, porém, que a fruição desse benefício desde sempre foi objeto da imposição de obstáculos por parte do Poder Executivo federal. Aliás, logo de início, o dispositivo que concedia a alíquota zero foi vetado pelo chefe do Executivo anterior, veto esse derrubado pelo Congresso em 18 de março de 2022.

Sucede, porém, que uma série de questões limitativas de enquadramento foram trazidas por atos administrativos, tais como obrigação de prévio registro no Cadastur, restrição a certos códigos de atividades econômicas (CNAES), exclusão de empresas enquadradas no Simples, tornando o Perse incerto e litigioso. O que deveria ser um alívio para as empresas do setor, tornou-se um verdadeiro tormento.

Mas agora, mesmo para aqueles que confiaram, se adequaram, migraram do Simples para outros regimes mais onerosos sobre outras receitas, o Executivo, não satisfeito, por meio da rancorosa MP 1.202 vai acabar com o benefício, restabelecendo as alíquotas em sua plenitude para a CSLL, PIS e Cofins a partir de 1º de abril de 2024 e retomará a cobrança do IRPJ em 2025, extinguindo, assim, antes do prazo de 60 meses, o programa que iria auxiliar na recuperação das empresas.

Ao invés de debater com o setor uma solução de equilíbrio, um faseamento, uma transição, o executivo, pelo instrumento autoritário da medida provisória, atropela e interfere no planejamento dos empresários que nada podem fazer a não ser buscar amparo judicial em uma discussão complexa, tendo em vista que, conquanto haja prazo certo para fruição do benefício, as contrapartidas da sua concessão, que justificam e autorizam a fruição, devem ser vistas como a obediência às restrições impostas à sua atividade ao longo do período pandêmico.

O diálogo com as entidades representativas, como aquele que vem sendo proposto pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), nos parece ser o melhor caminho. As sugestões apresentadas são altamente razoáveis e indicam maturidade. Propõe-se limitar as desonerações ao prejuízo declarado pelas empresas no período de 2020 a 2023 ou que se estabeleça uma trava para a desoneração com base no faturamento médio mensal no ano anterior (2019) ao do estabelecimento das restrições corrigido pela inflação.

Ou seja, há alternativas para limitar o quantum dos benefícios fiscais usufruídos, de forma a se proporcionar uma medida de justiça, que ao mesmo tempo repare um sacrifício, mas não seja vista como uma desoneração despropositada. Isso pode ser atingido sem canetadas no fim de dezembro, como foi a MP 1202, de 2023.

Por tudo o que se expôs, nesse (re)começo de ano, a cesta de lixo é o melhor destino que deve ser dado à MP 1202, uma acintosa e violenta afronta aos poderes legislativo e judiciário e, principalmente, à segurança jurídica dos contribuintes brasileiros.

 


[1] Teoria da Segurança Jurídica, 6ª edição, São Paulo, 2021, p. 748

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