Reforma tributária: um tiro no escuro

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-dez-20/reforma-tributaria-um-tiro-no-escuro/

 

Acompanhamos, na última sexta-feira (15/12), a aprovação da PEC 45/19 no Congresso, que reestrutura disruptivamente a tributação do consumo no país, para impingir aos contribuintes brasileiros a incidência daquele que será o IVA mais elevado do planeta.

Foi uma longa jornada, iniciada mais de meia década atrás, quando o CCiF (Centro de Cidadania Fiscal), instituição majoritariamente apoiada pela indústria, propôs a criação de um IVA alegadamente moderno. O projeto, desde o início bastante polêmico, causou extrema controvérsia por inúmeras razões. Entre elas, a decorrente do fato de que o sistema criado onerava excessivamente o setor de serviços, sob a estranhíssima fundamentação de que beneficiários de serviços são, em regra, pertencentes a classes mais abastadas (??!!). Oneravam-se, assim, os serviços para desonerar a indústria. Despia-se um santo para vestir o outro.

As promessas, com o projeto criado, eram as de que a nova sistemática de tributação do consumo traria enormes benesses, tais como simplicidade, transparência, não cumulatividade ampla e irrestrita, tributação no destino (com a consequente eliminação da guerra fiscal), isonomia tributária etc. Chegaram a prometer acréscimos do PIB em inacreditáveis 12 pontos percentuais, em dez anos, o que nos deixou a todos perplexos com uma afirmativa dessas, de forma tão peremptória e inconsequente, visto que nem sequer o PIB do ano corrente consegue-se prever com exatidão…

Diante dessas sedutoras e envolventes promessas, leigos que compunham grande parcela da sociedade, nela incluídos vários parlamentares, passaram a bradar aos quatro ventos que a reforma tributária teria que ocorrer o mais rapidamente possível, pois seria a única forma de o País sair desse inegável caos tributário em que vivemos e migrar para um sistema que permitisse segurança jurídica, desenvolvimento econômico, incentivo a investimentos e, consequentemente, a criação de novos empregos.

Essa parcela da sociedade não conseguia enxergar os diversos “vícios redibitórios” que feriam de morte a credibilidade das promessas que se faziam, e apoiava, com veemência, pressa na aprovação das mudanças, antes mesmo de uma reforma administrativa que tornasse o Estado menos necessitado de recursos.

O projeto foi, então, submetido à Câmara dos Deputados, em 2019.

Em 2020, veio a pandemia, que tornou o ambiente ainda mais inadequado a qualquer mudança tributária.  O Estado estava ainda mais inflado e carecia de receitas em patamares muito superiores aos normais, para o enfrentamento daquele estado de coisas.

Isso fez com que os debates da reforma tributária se arrefecessem e assim se mantivessem até as eleições do atual governo. Com a nova administração, o projeto veio a ser efetivamente impulsionado para fazer face às dificuldades orçamentárias relacionadas ao aumento de despesas provocado, entre outros, pelos compromissos decorrentes da PEC da transição e afins.

Criou-se, então, na Câmara dos Deputados, sob o comando do seu presidente, deputado Arthur Lira, um grupo de trabalho (GT) cuja coordenação coube ao deputado Reginaldo Lopes, e a relatoria, ao deputado Aguinaldo Ribeiro. Nessa oportunidade, os regramentos da PEC 45/19 foram aglutinados aos da PEC 110/19, que já havia sido relatado pelo senador Roberto Rocha.

O relatório final do GT foi evasivo e não trouxe efetivas soluções aos problemas até então postos. O texto proposto para a PEC só foi apresentado semanas depois, com apenas 24 horas de antecedência da primeira rodada de votações na Câmara dos Deputados.

A partir daí, conforme já tivemos oportunidade de demonstrar nesta coluna, passamos a assistir, em absoluta perplexidade, graves afrontas ao Estado Democrático de Direito em todo o trâmite da PEC na Câmara dos Deputados.

De fato, diferentemente do que ocorreu na votação feita no âmbito do Senado — em que o debate das novas regras ocorreu de forma muito mais serena e cuidadosa —, na Câmara dos Deputados, foram vários os exemplos de irregularidades ocorridas em ambas as rodadas de votação.  Seguem alguns exemplos:

(i) supressão do indispensável trâmite da PEC pelas Comissões de Constituição e Justiça e de Assuntos Econômicos (CCJ e CAE), tanto na primeira quanto na segunda rodada de votação;
(ii) adoção de regras regimentais que dificultaram a apresentação de propostas de alterações no texto por parte dos parlamentares;
(iii) alteração no texto por parte de um par de parlamentares durante a votação do projeto na primeira rodada de votações, ao ponto de surgir dessas modificações um novo tributo (contribuição sobre a exportação de produtos primários e semielaborados), jamais discutido até então; o texto só foi disponibilizado dias depois;
(iv) realização, na prática, de apenas um turno de votação, em ambas as rodadas, tendo em vista que os dois turnos constitucionalmente previstos foram realizados sem um intervalo razoável que tornasse possível a ponderação por parte dos parlamentares sobre a forma como estavam votando (essa prática também foi adotada na votação ocorrida no Senado);
(v) permissão de votação remota por parte de parlamentares ausentes, em ambas as rodadas de votação, o que é impensável na votação de um projeto que altera a Constituição em uma matéria tão sensível para a sociedade brasileira; nos dias de votação, os plenários da Câmara estavam vazios.

Quando o projeto voltou do Senado para a Câmara, houve, ainda, a esdrúxula tentativa, também por nós comentada neste espaço,  de fatiar a PEC, de forma a que fosse votada e aprovada somente a parcela que constituísse consenso em ambas as casas legislativas. Tudo o que tivesse sido alterado no Senado seria inserido em uma PEC paralela, para posterior votação — exatamente como havia ocorrido na reforma da previdência, cuja PEC paralela então formada até hoje não foi votada.

Pelo inegável desrespeito ao Senado que essa prática configuraria e pela impossibilidade lógica da sua adoção (pois, se fatiada dessa forma, as novas regras não parariam em pé), essa proposta se mostrou tão absurda que foi abandonada, retornando-se ao procedimento correspondente à regra geral: as emendas supressivas seriam votadas e, se aprovadas, não acarretariam necessidade de retorno do projeto ao Senado; se houvesse alteração de mérito, esse retorno se tornaria imprescindível.

Ocorre que também essa regra geral foi desrespeitada, mas a demonstração dessa irregularidade será feita em outra oportunidade, de forma mais detida.

O resultado de toda essa sequência de equívocos foi que a grande maioria das benesses prometidas quando da idealização do projeto de reforma tributária não se concretizaram.

De fato, que simplicidade foi essa, em que cinco tributos (IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins) são substituídos por outros cinco (IBS, CBS, IS, IPI/ZFM e a Contribuição sobre a exportação de produtos primários e semielaborados)?

Que não cumulatividade ampla e irrestrita é essa, que permite que o crédito fique condicionado ao efetivo pagamento do tributo pelo elo anterior da cadeia, tornando necessário que, para que possam se creditar, os contribuintes adquirentes se tornem verdadeiros auditores fiscais dos seus fornecedores – que podem chegar aos milhares, em empresas de grande porte?

Que não cumulatividade é essa em que um conceito de tamanha importância e gerador de tanto contencioso, como é o caso de “bens de uso e consumo”, é delegado à lei complementar?

Na mesma toada, que tributação no destino é essa, cuja definição do elemento que lhe é essencial (o destino em si) é também deixada para lei complementar, com a sugestão da observância de critérios definidos na própria PEC (artigo 156-A, Parágrafo 5º, inciso VI) que mais confundem do que orientam?  Para que se demonstre a importância dessa conceituação, basta lembrar que, muito recentemente, o STF julgou inconstitucionais todas as seis delegações de competência para o município de destino promovidas pelas Leis Complementares 157/16 e 175/20, relativamente à incidência do ISS.  Essa era, portanto, uma conceituação que deveria ter sido feita já na Constituição.

Que isonomia tributária é essa em que alíquotas reduzidas, regimes diferenciados e regimes específicos são criados em profusão, muitos deles sem qualquer fundamentação?

Aliás, foi exatamente a constatação da quebra da isonomia prometida originalmente pelos autores do projeto que levou os profissionais liberais a lutar com tanta resiliência e determinação pela adoção de um regime tributário que atendesse às especificidades das profissões regulamentadas (engenheiros, médicos, dentistas, arquitetos, contadores, advogados etc.).

Até então, discutíamos e debatíamos tão somente as questões mais amplas e genéricas relativas ao projeto proposto, como aquelas a que nos referimos acima: conceito de não cumulatividade, de destino, princípio do federalismo etc.

Quando se verificou, entretanto, que tantas exceções foram contempladas no projeto originário da Câmara dos Deputados, a conclusão natural foi a de que, se era para haver regimes que contemplassem as especificidades dos setores a serem tributados, o das profissões regulamentadas acima referidas teria de ser o primeiro.

Formou-se, então, um grupo de 44 instituições representativas dessas profissões, que logrou êxito na demonstração aos parlamentares de ambas as casas legislativas de que:

(i) a sujeição dos profissionais liberais à tributação regular do IBS/CBS proporcionará a esse setor, de inegável essencialidade, aumento de alíquota nominal que poderá́ chegar a incríveis 700%;
(ii) essa sobrecarga tributária se agravará ainda mais, tendo em vista que os serviços prestados por esses profissionais prescindem da utilização de insumos relevantes, sendo, consequentemente, reduzidas as oportunidades de creditamento; disso resultará que os profissionais liberais pagarão alíquotas elevadas, típicas de tributos não cumulativos, em um ambiente em que não haverá́ compensações;
(iii) para os profissionais liberais que atuam no meio da cadeia, devido ao reduzido poder de negociação com empresas de maior porte, haverá́ significativa dificuldade no repasse do ônus correspondente ao aumento de carga acima referido, do que decorrerá sensível diminuição das suas respectivas margens;
(iv) entre todas as exceções inseridas na PEC 45/19 durante o seu trâmite em ambas as casas legislativas (bares, parques de diversão, restaurantes, bancos, imobiliárias, loterias etc.), a única que configura regime especial que já perdura há 55 anos é a concedida aos profissionais liberais (nos termos do D.L. 406/68, art. 9o, §§ 1o e 3o);
(v) todas as várias tentativas de revogação desse regime especial (quando do trâmite dos PLs dos quais resultaram a LC 116/03, LC 157/16, LC 175/20, entre outros) foram de plano rejeitadas pelo Congresso  ao longo desses 55 anos;
(vi) em todas as oportunidades em que esse regime especial foi examinado pelo STF e o STJ, ele foi, por quóruns absolutamente expressivos (11×0, 7×1 etc.), considerado justo, constitucional e não configurador de benefício fiscal, mas mero regime diferenciado que atende às especificidades de um setor com características únicas;
(vii) trata-se, portanto, de regime especial de tributação abençoado por todos os Poderes da República, durante todas essas décadas;
(viii) a aplicação de redução de alíquota em 30% não trará impacto na alíquota base do IBS/CBS, tendo em vista que, por ser reduzida, a tributação proporcionará menor crédito para os elos seguintes da cadeia e, consequentemente, maior valor de imposto a pagar por esses outros contribuintes; não haverá, portanto, qualquer alteração nos níveis de arrecadação;
(ix) quanto aos profissionais que atendem pessoas físicas, eles estarão, em regra, no regime do Simples, que não será impactado pela reforma tributária.

É muito importante salientar que, nas manifestações que fizeram no âmbito do Congresso Nacional, as referidas instituições sempre reiteraram que, caso todas aquelas outras exceções fossem retiradas do texto da PEC 45/19, o pleito de atribuição de um regime que atendesse às suas especificidades seria peremptoriamente afastado.

De fato, o que as motivava a fazê-lo era tão somente a isonomia que deveria ser observada com todos aqueles outros setores e atividades, ditos essenciais, que haviam sido contemplados com tratamentos diferenciados. Não seria justo nem isonômico que, após tantas exceções criadas pela própria Câmara dos Deputados na primeira etapa de votação, esse setor de serviços, tão essencial ao País, deixasse de também ser tributado de acordo com as características que lhe são próprias.

Prevaleceu o bom senso, pelo menos no que diz respeito a essa peculiaridade da PEC 45/19! O Senado criou e a Câmara dos Deputados manteve a redução de 30% de alíquota do IBS e CBS incidente nos serviços prestados pelos profissionais liberais.

Note-se, porém, que, mesmo com a aplicação da alíquota diferenciada — insuficiente, quando comparada à atribuída a atividades igualmente essenciais, equivalente a 40% da alíquota de referência —, essas profissões regulamentadas passarão a pagar, com as novas regras, muito mais do que já pagavam há décadas, o que contraria a máxima de que a reforma tributária não deve almejar aumento de carga tributária, e sim a simplificação dos procedimentos a que submetidos os contribuintes.

Essa discussão terá de ser retomada em futuro próximo.

Enfim, o que constatamos com tudo aqui relatado é que muitos obstáculos e desafios terão de ser ultrapassados para que as velas deste barco venham a ser posicionadas de forma favorável.

Corrobora essa constatação o fato de que inúmeras matérias foram delegadas à lei complementar. Haverá, portanto, ainda, um longo caminho a ser trilhado. Este foi só o primeiro passo.

Por mais que haja sérias e preocupantes perplexidades em relação a vários e variados aspectos do texto aprovado, não há como não enaltecer a resiliência dos autores do projeto. De fato, sem a dedicação, persistência e teimosia que lhes foi peculiar durante todo esse período, a PEC certamente não teria vingado. Contudo, a inevitável contrapartida desse enaltecimento corresponderá à eterna responsabilização que lhes será impingida por todas as prováveis consequências de tão disruptiva e açodada reforma da tributação do consumo no país.

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