Diálogo interdisciplinar é essencial no mundo que se transforma a cada minuto

As mudanças na dinâmica social verificadas no decorrer das últimas décadas foram profundas. Expressões inglesas como artificial intelligencebig datamachine learningdeep learning e internet of things se tornaram parte do cotidiano. Algoritmos ditam o rumo da sociedade e “robôs investidores” já respondem por 40% do total de operações realizadas na bolsa de valores brasileira[1].

Esse cenário de rápidas transformações é potencializado com o crescente uso de sistemas de inteligência artificial (IA), tecnologia que, intimamente relacionada com a robotização, permite que máquinas processem e desempenhem tarefas complexas, antes consideradas essencialmente humanas.

Nesse contexto, ganha relevo o Direito da Regulação, cuja qualificação como disciplina jurídica autônoma é relativamente recente no país. Em sua feição normativa, o Direito da Regulação cuidará de estabelecer normas gerais e abstratas para a ordenação das diferentes atividades econômicas. No campo das inovações, a regulação poderá se voltar para uma tecnologia em particular ou para criação de ambiente propício à inovação.

Em uma via de mão dupla, o Direito Tributário interage com o Direito da Regulação. Por exemplo, poderá tomar determinada situação regulada em lei como hipótese de incidência tributária ou mesmo extrair da legislação regulatória traços relevantes do fenômeno normatizado para perquirir a aderência da norma fiscal.

Basta recordar que as definições de “serviço de telecomunicação” e “serviço de valor adicionado”, constantes da Lei Geral de Telecomunicações (arts. 60 e 61), são essenciais para a determinação de qual tributo circulatório incide em cada hipótese (ICMS-comunicação, ISS ou nenhuma das exações).

Recentemente, o Decreto 9.854/19 definiu “internet das coisas” (IOT) como a “infraestrutura que integra a prestação de serviços de valor adicionado com capacidades de conexão física ou virtual de coisas com dispositivos baseados em tecnologias da informação e comunicação existentes e nas suas evoluções, com interoperabilidade” (art. 2º, I), o que poderá impactar debates acerca da incidência do ICMS-comunicação.

Tal como ocorreu com a telecomunicação e outros setores regulados, espera-se que as atividades que empregam tecnologias de alto impacto social, como robôs autônomos e sistemas de inteligência artificial, venham a ser objeto de regulação específica.

Nesse sentido, o Parlamento Europeu editou, em 2017, resolução na qual aponta caminhos para a regulação dos robôs[2]. Entre as propostas debatidas, está a potencial atribuição de personalidade jurídica aos robôs dotados de capacidade autônoma de decisão.

Eventual opção pela concessão de personalidade jurídica aos robôs produzirá impactos no Direito Tributário, posto que, entre outras questões, uma máquina poderá deter capacidade tributária passiva.

Sob outro enfoque, sendo o Direito Tributário, em essência, ramo de superposição, tem-se que a boa regulação também poderá servir de inspiração para que o Poder Legislativo desenhe novas hipóteses de incidência compatíveis com a atual dinâmica social.

No que se refere à regulação “para inovação”, também se constata forte interação entre o Direito da Regulação e o Direito Tributário. Para que a empreitada rumo ao desenvolvimento de uma tecnologia de vanguarda seja exitosa, é necessário cuidadoso planejamento estratégico, no qual serão examinados os fatores externos, inclusive de natureza tributária.

Nesse campo, destacamos três fatores tributários centrais que podem afetar o bom ambiente regulatório que se pretende estabelecer: (i) carga tributária; (ii) custo de conformidade fiscal; e (iii) proteção dos sócios e investidores contra dívidas tributárias próprias da empresa investida.

Quanto ao primeiro fator, a carga tributária brasileira hoje se aproxima da média dos países da OCDE. De todo modo, é relevante recordar que o baixo retorno do Estado, inclusive em termos de financiamento de pesquisas científicas, pode impactar negativamente o ambiente de inovação.

Além disso, a carga tributária brasileira poderá se elevar em breve caso seja implementada reforma tributária ampla em momento no qual o país necessita urgentemente de recursos. Como adverte Gustavo Brigagão, presidente da querida Associação Brasileira de Direito Financeiro, não é inteligente ir ao mercado com fome.

No que se refere ao segundo fator, é indiscutível que os custos de conformidade tributária no Brasil são elevados. O país ocupa a última posição no famoso ranking de jurisdições que mais demandam tempo (e recursos) dos contribuintes para o cumprimento da legislação tributária, como reporta anualmente o World Bank[3].

Ainda assim, é com orgulho que constatamos o protagonismo de empresas brasileiras no desenvolvimento de aplicativos e novos serviços no segmento digital, tendo sido observado o surgimento dos “unicórnios” Nubank, 99, IFood, PagSeguro e Stone, além de outras promissoras startups.

Sem que se possa traçar necessária relação de causalidade, é curioso notar que o ambiente de conformidade fiscal é mais amigável com os prestadores de serviço no comparativo com os segmentos da indústria e comércio.

Essa maior “simplicidade” poderá ser aniquilada com o deslocamento da tributação circulatória incidente sobre serviços para o local do consumo, processo iniciado de forma atabalhoada com a edição das Leis Complementares (LC) 157/16 e 175/20.

Se a tributação no destino pode propiciar maior justiça em termos de repartição de receitas tributárias, é difícil estimar o seu impacto nos custos de compliance ante o elevadíssimo número de municípios brasileiros.

Nesse particular, chama a atenção o fato de que a recente LC 175/20 imputa aos contribuintes o ônus de desenvolver “sistema eletrônico de padrão unificado em todo o território nacional” (art. 2º, § 1º), obrigação acessória no mínimo desproporcional e desarrazoada.

Para estimular a inovação, é também viável que o legislador estabeleça políticas fiscais direcionadas, como a concessão de benefícios fiscais, valendo-se da extrafiscalidade. No caso brasileiro, o exemplo clássico de incentivo à inovação é a Lei 11.196/05 (Lei do bem), que prevê benefícios à pesquisa em inovação tecnológica, programas de inclusão digital, entre outras providências.

Parece-nos preferível, contudo, que os desafios tributários sejam endereçados de forma macroscópica, criando-se ambiente positivo para a totalidade dos negócios, e não apenas para determinado segmento tópico.

De fato, não raramente a inovação tecnológica decorre do desenvolvimento de solução de eficiência para dado segmento da economia dita tradicional. Assim, quanto mais desenvolvida a atividade econômica em geral, maior a chance de que inovações venham a surgir.

Quanto ao terceiro fator (proteção dos investidores), destacamos que a crescente tendência de “desconsideração” da personalidade jurídica para fins de responsabilização de sócios (e outros terceiros), por vezes sem qualquer fundamentação legal clara, opera como desincentivo aos investimentos em inovação.

A limitação da responsabilidade que marca determinados tipos societários é essencial para que o agente econômico possa racionalmente determinar os riscos que deseja assumir. Se a regra fosse a responsabilidade ilimitada dos sócios, é possível que investidor então optasse por aplicar seus recursos alhures.

Em síntese, há diferentes pontos de conexão entre o Direito da Regulação e o Direito Tributário. O diálogo interdisciplinar é essencial para que o Direito se renove na mesma velocidade com a qual a tecnologia transforma a realidade social.


[1] PARANÁ, Edemilson. A digitalização do mercado de capitais no Brasil: Tendências recentes. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8280/1/TD_2370.PDF>. Acesso em 30 de junho de 2020.

[2] EU. European Parliament. Disponível em: <https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-8-2017-0051_EN.html#title1>. Acesso em 23 de junho de 2020 .

[3] World Bank. Time to prepare and pay taxes. Disponível em: <https://data.worldbank.org/indicator/IC.TAX.DURS?locations=BR&most_recent_value_desc=true>. Acesso em 23 de setembro de 2020.


PUBLICADO NO JOTA:

Direito Tributário e regulação na era digital

Eduardo Barboza Muniz
+ posts

Sócio Conselheiro