E o julgamento das ADIs 6.399, 6.403 e 6.415

Nesse mês de março de 2021, completamos um ano de home office. O afastamento compulsório do ambiente dos escritórios revolucionou a dinâmica da advocacia. Longe uns dos outros fisicamente, paradoxalmente nos tornamos mais próximos graças ao uso das ferramentas tecnológicas, que popularizaram as lives jurídicas.

Uma das primeiras grandes discussões tributárias virtuais que surgiram no início da temporada de lives, animando os dias de lockdown, girava em torno da polêmica extinção do chamado “voto de qualidade” no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Com efeito, o art. 28 da Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020 (Lei do Contribuinte Legal), fruto da conversão da Medida Provisória (MP) 899/2019, veio estabelecer uma nova sistemática de julgamentos no âmbito do contencioso administrativo federal, segundo a qual, em caso de empate, deixa de se aplicar se aplica o voto de qualidade, resolvendo-se a questão favoravelmente ao contribuinte.

Assim, o voto de desempate, que cabia à presidência das turmas do Carf – ocupada por representantes do Fisco, através de um voto que “valia por dois” – deixou se ser a regra para desempatar os julgamentos, consagrando-se, no processo administrativo fiscal federal, o princípio in dubio pro contribuinte.

O dispositivo legal que inaugurou a nova sistemática em questão foi objeto de três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 6.399, 6.403 e 6.415) propostas pelo procurador-geral da República, pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e pela a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), respectivamente, que resistem em aceitar a medida legislativa aprovada pelo Congresso Nacional, por considerá-la prejudicial ao interesse público.

As ações em questão foram incluídas na pauta do Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal e tiveram o seu julgamento iniciado em 2 de abril de 2021.

Embora não possamos deixar de consignar a nossa absoluta discordância com os argumentos de índole formal e material expostos pelos subscritores das ações de controle concentrado acima referidas, o propósito central do presente artigo não é o de defender a constitucionalidade do art. 28 da Lei 13.988/20, e sim o de que tecer breves considerações sobre o impacto da nova sistemática de julgamento sobre a jurisprudência do Carf.

Inicialmente, deve-se ter em mente que os efeitos do novo regramento se fizeram sentir de forma bastante tímida até o momento.

De fato, no atual contexto pandêmico, em que as sessões presenciais do Carf estão suspensas, a imposição de valores máximos aos processos que podem ser julgados de forma virtual – R$ 1 milhão, até agosto de 2020, R$ 8 milhões, até janeiro de 2021, R$ 12 milhões, até março de 2021 e R$ 36 milhões, atualmente, – reduziu os impactos da abolição do voto de qualidade promovida pela Lei do Contribuinte Legal.

Portanto, sequer chegaram a ser pautadas as causas de valores mais expressivos, envolvendo teses construídas pelos autos de infração fazendários e que costumavam ser decididas pelo voto de qualidade em sentido favorável ao fisco, de que são exemplos os casos de ágio, PLR, tributação de lucros de empresas no exterior.

Como se não bastasse, também tem se verificado a retirada de pauta de processos cujos valores históricos, embora inferiores aos limites acima referidos, versam sobre temas sensíveis, reputados estratégicos. Nessas hipóteses, é comum que a Procuradoria e/ou os contribuintes requeiram o destaque para julgamento presencial, que é atualmente tratado como um direito das partes (art. 15º, §1º, da Portaria Carf/ME 690/21).

Por fim, a nova regra de desempate sofreu severa (e, a nosso ver, ilegal) restrição com a edição da Portaria ME 260/20, segundo a qual a sistemática antiga (desempate pelo voto de qualidade proferido pelo  presidente do colegiado que, como visto acima, invariavelmente representa o fisco), deveria continuar sendo utilizada em processos que envolvam responsabilidade tributária, questões de natureza processual, conversão do julgamento em diligência, ou mesmo no julgamento de embargos de declaração e de processos de compensação/restituição.

Ao editar o referido ato normativo infralegal, o Ministério da Economia extrapolou o seu poder regulamentar e criou limitações não previstas em lei. Como acertadamente consignou recente decisão judicial sobre o tema[1], a Portaria ME 260/20 configura “simples manobra para reinstituir figura que foi extirpada pela Lei 13.988/2020”, de modo que não surpreende que atualmente tramite projeto de decreto legislativo (PDL 316/2020) na Câmara dos Deputados com a finalidade de sustá-la.

Diante das múltiplas limitações impostas à aplicação da nova sistemática de desempate pela referida Portaria, tampouco se estranha que a imprensa especializada tenha noticiado que, mesmo após o advento da Lei 13.988/20, o maioria dos casos em que se verifica a ocorrência de empate seguem sendo julgados favoravelmente ao Fisco.

De fato, foi recentemente noticiado neste espaço que, no período compreendido entre abril de 2020 e janeiro de 2021, houve empate em 474 julgamentos de mérito no âmbito do Carf.

No entanto, em apenas 209 ocasiões (44%), o empate levou a desfecho favorável aos contribuintes. Nas outras 265 oportunidades (56%), os casos foram decididos pela antiga sistemática de julgamento (voto de qualidade do presidente), razão pela qual o desempate acabou por prestigiar os interesses da Fazenda Nacional.

Percebe-se, portanto, que a sistemática introduzida pela Lei do Contribuinte Legal está bastante distante de representar “inversão da ordem de prevalência do interesse público para o interesse privado”, como pretende fazer crer a ANFIP na sua ADI.

Em que pese o exposto acima, é inegável que a supressão do voto de qualidade fez com que a jurisprudência administrativa evoluísse em relação a determinadas matérias que vinham sendo julgadas contrariamente aos contribuintes pelo voto de qualidade e que, a partir da nova regra de desempate, passaram a ser decididas em seu favor.

No entanto, longe de enfrentarem temas verdadeiramente polêmicos, no mais das vezes, as decisões proferidas com base na nova sistemática introduzida pela Lei 13.988/20 disseram respeito a matérias que já vinham sendo solucionadas favoravelmente aos contribuintes no âmbito do Poder Judiciário.

É o que se depreende dos seguintes julgados da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) sob a vigência da nova sistemática de julgamento introduzida pela Lei 13.988/20, que reconheceram:

(i) a impossibilidade da cobrança de multa isolada por falta de recolhimento de estimativas mensais de IRPJ e CSLL nos casos em que já exigida a multa de ofício, mesmo após o advento da Lei 11.488/2007[2];

(ii) a não incidência do IRPJ em operações de permuta de imóveis realizadas por contribuintes optantes pelo lucro presumido;

(iii) a compensação tributária anterior ao início do procedimento fiscal é suficiente para configurar denúncia espontânea e atrair a aplicação do disposto no art. 138 do Código Tributário Nacional, afastando, por conseguinte, a imposição de penalidades[3];

(iv) a inviabilidade da inclusão da área de reserva permanente na base de cálculo do Imposto Sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR)[4]; e

(v) a inexigibilidade de requisitos não constantes em lei complementar para fins de fruição, pelas entidades de educação e de assistência social, da imunidade das contribuições de seguridade social prevista no art. 150, §7º, da CF/88[5].

Note-se que os casos analisados acima são meramente ilustrativos. Há diversas outras questões que foram solucionadas favoravelmente aos contribuintes em razão da não aplicação do voto de qualidade e corroboram a tendência destacada acima de maior alinhamento entre o entendimento do Carf e a jurisprudência dos Tribunais Superiores.

Não se pode, portanto, afirmar que o fim do voto de qualidade prejudica o interesse público. Pelo contrário, a nova sistemática de empate pró-contribuinte vem sistematicamente resguardando a União Federal de levar discussões infrutíferas e fadadas ao insucesso ao Poder Judiciário.

Evita-se, assim, a instauração de contencioso judicial irracional e a oneração dos cofres públicos com os custos associados à manutenção da máquina judiciária e a condenações da Fazenda Pública em honorários de sucumbência.

Nos casos polêmicos, porém, ainda não se pode fazer uma avaliação de como os julgadores se comportarão. Mas porque não esperar para ver, tão logo a normalidade na dinâmica dos julgamentos retorne?

Por que declarar inconstitucional aquilo que serviu para reequilibrar as forças no embate entre fisco e contribuinte? Por que não aceitar a vontade soberana da cidadania expressa pelo Congresso Nacional? Por que não aceitar que a dúvida do empate favoreça o contribuinte? Por que não deixar que se protejam os contribuintes, fazendo justiça fiscal?

A resposta está com o Supremo Tribunal Federal.


[1] Mandado de Segurança nº 1039677-39.2020.4.01.3400, 6ª Vara Federal Cível, Seção Judiciária do Distrito Federal, Proferida em 03 de novembro de 2020.

[2] Acórdão 9101-005.080, Câmara Superior de Recursos Fiscais, 1ª Turma, Sessão de 01 de setembro de 2020.

[3] Acórdão nº 9303-011.117, Câmara Superior de Recursos Fiscais, 3ª Turma, Sessão de 20 de janeiro de 2021.

[4] Acórdão nº 9202-008.906, Câmara Superior de Recursos Fiscais, 2ª Turma, Sessão de 30 de julho de 2020.

[5] Acórdão nº 9303-010.974, CSRF, 3ª Turma, Sessão de 11 de novembro de 2020.

 


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Extinto, pero no mucho: um ano de aplicação mitigada do voto de qualidade no Carf

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