A MP do retorno do voto de qualidade: afronta ao legislativo

Com a revogação do art. 19-E pela malfadada MP 1.160 retorna-se ao caos da total e absoluta insegurança jurídica

 

Por Roberto Duque Estrada

Veiculado por JOTA TRIBUTOS. Disponível em < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-mp-do-retorno-do-voto-de-qualidade-afronta-ao-legislativo-29012023 >.

 

A Medida Provisória n.º 1.160, de 12 de janeiro de 2023, apresentada como parte do pacote de medidas destinadas a incrementar a arrecadação, configura uma das maiores afrontas do executivo contra o legislativo que se tem memória na história desse país.

Trata-se, com efeito, de uma tentativa espúria de eliminar grande avanço promovido pelo poder legislativo – o artigo 19-E da Lei n.º 10.522/2002 – que concedeu à iniciativa privada a tão sonhada carta de alforria contra os desmandos autoritários do fisco, dando aos contribuintes o direito de que, em caso de empate nos julgamentos de processos administrativos fiscais no plano federal, prevalecesse a interpretação legal que lhes fosse mais favorável.

Esse avanço legislativo, lamentavelmente, foi fulminado pela MP 1.160. Numa canetada, nas sombras dos gabinetes fazendários, absolutamente alheio às dificuldades enfrentadas pelos contribuintes, o novo governo quer ressuscitar o “voto de qualidade” como panaceia para solução de suas necessidades arrecadatórias.

Voto de qualidade é a designação dada ao método de desempate de julgamentos de recursos fiscais pelo qual se atribui um peso maior ao voto do presidente das turmas julgadoras do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o CARF, ocupado por representantes da fazenda nacional nos termos do art. 25, §9º do Decreto n.º 70.235/1972. Assim, em caso de empate, o voto do presidente será utilizado como voto de desempate. Veja-se que não se trata de um novo julgador que intervém para desempatar, mas da atribuição de um maior peso a um determinado voto que passará a valer como se dois votos fossem.

O uso desenfreado, quase que abusivo, do voto de qualidade, com o claro objetivo de prevalecer as orientações fiscalistas, fez com o que o CARF, na última década, em alguns momentos deixasse de ser um órgão de julgamento exclusivamente vinculado à lei, como é de sua tradição, para transformar-se em uma mero confirmador, pelo voto de qualidade, das autuações fiscais que despertavam maiores interesses arrecadatórios para o Erário.

Exemplos paradigmáticos são as discussões de autuações de imposto de renda das pessoas jurídicas envolvendo a dedutibilidade do ágio, a tributação de lucros de controladas e coligadas no exterior em países com tratado, a dedução retroativa de juros sobre capital próprio, a aplicação das leis de preços de transferência, a tributação de permuta imobiliária pelas empresas optantes pelo lucro presumido, o afastamento da trava de 30% na extinção da pessoa jurídica, entre outras.

Mas não é só nesse domínio que o voto de qualidade foi usado e abusado. Diversas discussões relevantes no domínio das contribuições sociais vinham sendo solucionadas por esse expediente, como a tributação de stock options, os critérios para não tributação de participação nos lucros e resultados (PLR), a não incidência de contribuição previdenciária sobre a bolsa estágio, o creditamento de PIS/COFINS no pagamento de frete de produtos submetidos ao regime monofásico, a não-incidência do PIS/COFINS sobre “receitas” de bonificação e descontos comerciais.

Acrescentem-se, ainda, as discussões em matéria de extensão de créditos de IPI, de imposto de renda das pessoas físicas na incorporação de ações, da aplicação desmedida e não fundamentada de multas qualificadas, entre muitas outras.

Tudo isso mudou com a intervenção necessária e oportuna do poder legislativo que aprovou a inclusão do artigo 19-E da Lei n.º 10.522/2002, nos termos do qual “em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto n.º 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte”.

No curto espaço de tempo em que vigorou o artigo 19-E os rumos foram corrigidos. As intepretações mais tradicionais que prestigiam a legalidade voltaram a ser confirmadas; o empate em favor dos contribuintes foi se consolidando e, aos poucos, o voto de bancada fazendário se liquefez, transformando-se em maioria, quiçá em unanimidade em alguns casos.

Com a revogação do art. 19-E pela malfadada MP 1.160 retorna-se ao caos da total e absoluta insegurança jurídica. 

Por isso, nas semanas vindouras de fevereiro, quando se iniciarão as sessões do CARF, o contribuinte vai gritar Fauda!, como no famoso seriado israelense, quando os comandados de Doron gritaram diante do caos instalado em uma operação em Gaza. As orientações e recomendações dos advogados e consultores, as avaliações de risco e provisões dos analistas e auditores, os custos da litigância, com honorários de sucumbência e garantias, enfim, tudo se reverterá, da noite para o dia, agora em desfavor da iniciativa privada. 

O poder legislativo não pode admitir que o caos se instale, que suas leis sejam alteradas sem diálogo, que os contribuintes fiquem expostos às artimanhas arrecadatórias. Antes, exige-se dos representantes que a MP 1.160 seja integralmente rejeitada e que não se considerem válidas as decisões por voto de qualidade tomadas na sua, que se espera brevíssima, vigência.

ROBERTO DUQUE ESTRADA – Sócio fundador do BDE – Brigagão, Duque-Estrada Advogados; diretor da ABDF; conselheiro do Conselho de Governança e Compliance da Associação Comercial do Rio de Janeiro; membro do Conselho Diretor da ABRASCA; membro do comitê de assuntos fiscais da International Bar Association

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