Autores:
Eduardo Barboza Muniz
Gabriel Bez-Batti
Vinícius Ramalho

 

  1. Introdução

No mês de maio de 2017, o Brasil formalizou a sua intenção de aderir à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE). Esse movimento exigiu a análise pelas partes envolvidas da adequação das práticas e normas adotadas pelo País aos mais de 250 (duzentos e cinquenta) instrumentos de políticas difundidos pela referida Organização.

Nesse contexto, a OCDE, em conjunto com as autoridades fiscais brasileiras, emitiu, em 2019, o documento intitulado “Joint Statement on the OECD-Brazil Transfer Pricing Project”, no qual foram firmadas as diretrizes gerais a serem nacionalmente observadas no que concerne ao processo de adaptação da legislação de preços de transferência.

No referido documento, identificou-se que 27 das 30 divergências e lacunas constatadas nas regras brasileiras propiciavam aumento do risco de dupla tributação (ou dupla não tributação) da renda, do que resultava a inibição do comércio transfronteiriço e do investimento externo no País. Concluiu-se, assim, que a alteração das regras brasileiras de preços de transferência era passo indispensável ao ingresso do Brasil na OCDE.

Some-se a isso o fato de que, no ano passado, o Departamento do Tesouro americano publicou o TD 9959, instrumento que restringiu o direito de crédito das empresas norte-americanas nas operações com partes situadas no exterior, inclusive nas hipóteses em que as jurisdições estrangeiras não tributam efetivamente a renda, como ocorreria no caso brasileiro em decorrência da inadequação aos padrões internacionais das regras de tributação na fonte e de preços de transferência.

Com o objetivo de contornar essas questões, no final do ano passado, o Governo Federal editou a Medida Provisória (“MP”) 1.152/22, que promoveu alterações substanciais na legislação do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro (CSL). Caso aprovada pelo Congresso, a MP entrará em vigor no ano de 2024, mas os sujeitos passivos poderão optar pela aplicação dos novos métodos já no ano-calendário de 2023.

O prazo para a apresentação de emendas se encerrará no dia 3 de fevereiro, e, conforme as regras constitucionais em vigor, a MP terá que ser convertida em lei no prazo de 60 (sessenta) dias, prorrogável por igual período, ou perderá a sua eficácia.

A principal mudança promovida pelas novas regras se refere ao fato de que as transações controladas com partes relacionadas no exterior deverão obedecer ao princípio arm’s length. Desse modo, se antes a legislação (Lei 9.430/96) previa certos métodos que se baseavam em margens fixas – como a de 20% (vinte por cento) no método de Custo de Produção mais Lucro (CPL) –, na vigência das novas diretrizes legais, passará a ser exigido que o contribuinte efetivamente busque determinar o preço parâmetro com base em operações realizadas entre partes independentes.

Para determinar se os termos e condições estabelecidas na transação entre partes relacionadas (transação controlada) estão de acordo com o princípio arm’s length, o contribuinte deverá: a) delinear a transação controlada, considerando as condições contratuais, as funções, os ativos e riscos, além das características dos bens e serviços, do contexto de mercado e da estratégia de negócio das empresas envolvidas; b) analisar a comparabilidade da transação controlada.

O contribuinte deverá analisar os fatos e as circunstâncias da transação, as evidências da conduta efetiva das partes com vistas a identificar as relações comerciais e financeiras entre as partes relacionadas, além das características economicamente relevantes associadas a essas relações.

Tais características deverão ser verificadas por meio de análise dos termos contratuais, funções desempenhadas pelas partes, características específicas dos bens, direitos ou serviços objetos da transação, circunstâncias econômicas das partes e do mercado que operam, além das estratégias de negócios e outras características consideradas relevantes.

Caso o preço praticado não esteja de acordo com o preço parâmetro, o contribuinte deverá adicionar a diferença ao resultado (ajuste espontâneo).  Se isso não ocorrer, caberá à autoridade tributária proceder ao referido ajuste.

Outra alteração importante diz respeito à introdução da regra do best method, segundo a qual o contribuinte deverá adotar o método mais apropriado entre aqueles estabelecidos pelo legislador, em contraposição ao modelo anteriormente instituído pela Lei 9.430/96, no qual o contribuinte poderia eleger aquele que lhe conviesse.

 

  1. Da seleção do método mais apropriado

A MP 1.152/22 estabelece que o sujeito passivo, nas suas transações, deve eleger o melhor entre os seguintes métodos para a análise do teste de comparabilidade:

  • Preço Independente Comparável – PIC, que consiste em comparar o preço ou o valor da contraprestação da transação controlada com os preços ou os valores das contraprestações de transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas;
  • Preço de Revenda menos Lucro – PRL, que consiste em comparar a margem bruta que um adquirente de uma transação controlada obtém na revenda subsequente – realizada para partes não relacionadas – com as margens brutas obtidas em transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas;
  • Custo mais Lucro – MCL, que consiste em comparar a margem de lucro bruto obtida sobre os custos do fornecedor em uma transação controlada com as margens de lucro bruto obtidas sobre os custos em transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas;
  • Margem Líquida da Transação – MLT, que consiste em comparar a margem líquida da transação controlada com as margens líquidas de transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas, ambas calculadas com base em indicador de rentabilidade apropriado;
  • Divisão do Lucro – MDL, que consiste na divisão dos lucros ou das perdas, ou de parte deles, em uma transação controlada, de acordo com o que seria estabelecido entre partes não relacionadas em uma transação comparável, consideradas as contribuições relevantes fornecidas na forma de funções desempenhadas, ativos utilizados e riscos assumidos pelas partes envolvidas na transação; e

Os métodos MLT e MDL são os mais usados na prática internacional, particularmente em decorrência da dificuldade na identificação de comparáveis.

A MP prevê, ainda, a possibilidade de adoção de outros métodos, desde que a metodologia alternativa adotada produza resultado consistente com aquele que seria alcançado em transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas.

   

iii.        Commodities

Como visto anteriormente, a Lei 9.430/96 admite que o contribuinte escolha, entre os disponibilizados, o método que lhe é mais favorável – que lhe permita fazer menos ajustes nos preços praticados com partes relacionadas. Há, porém, duas exceções a essa regra geral: o contribuinte está obrigado a adotar os métodos PCI e PECEX, respectivamente, na importação e exportação de commodities (art. 18, §16º c/c art. 19, §9º, da Lei 9.430/96).

A MP 1.152/22, por sua vez, estabelece que o método PIC é o mais apropriado para identificar o preço arm’s length de commodities. Nesse caso, deve-se identificar a cotação da commodity nas bolsas de mercadorias e futuros internacionalmente reconhecidas, ou definir tal parâmetro com o auxílio de agências de pesquisas ou governamentais.

Nesse ponto, caberá à Secretaria Especial da Receita Federal editar orientações sobre referida metodologia. No que diz respeito ao setor de óleo e gás, ainda não se sabe qual papel será exercido pela ANP na fixação do preço parâmetro de produtos relacionados ao petróleo.

As regras estabelecidas pela OCDE, porém, são claras no sentido de que o “preço parâmetro” obtido por meio de agências de estatísticas, relatórios de preços reconhecidos e transparentes, ou de valores obtidos em agências governamentais de fixação de preços, somente serão utilizados se tais índices também forem adotados como referência por partes não relacionadas quando da determinação dos preços das suas transações. Nesse sentido, é o teor do item 2.18 dos guidelines de preços de transferência da referida Organização:

“In this context, a quoted price also includes prices obtained from recognized and transparent price reporting or statistical agencies, or from governmental price-setting agencies, where such indexes are used as reference by unrelated parties to determine prices in transactions between them”.

Embora os contratos de fornecimento de petróleo possam diferir por conta do destino, duração, volume, transporte, entre outros fatores, as cotações de mercado de agências governamentais de fixação de preços ou agentes como o S&P Global Platts são amplamente utilizados no mercado internacional, por serem considerados métodos confiáveis.

Nesse cenário, é possível que a Secretaria Especial da Receita Federal venha a editar regulamentação no sentido de que o método adotado hoje pela ANP somente poderia ser utilizado se referidos índices também fossem adotados como parâmetros por partes não relacionadas para determinar os preços de suas transações.

 

  1. Intangíveis

A Lei 9.430/96, ainda em vigor, estabelece limites à dedução de royalties pagos a beneficiários no Brasil e no exterior.

A legislação prevê os mais diversos coeficientes para limitar a dedutibilidade dos royalties pagos pelo uso de patentes de invenção, processos e fórmulas de fabricação, despesas de assistência técnica, científica, administrativa ou semelhante. Eis alguns exemplos: 1% (um por cento) para o uso de marcas de indústria e comércio, ou nome comercial, em qualquer tipo de produção ou atividade, quando o uso da marca ou nome não seja decorrente da utilização de patente, processo ou fórmula de fabricação; 3% (três por cento) para material elétrico, 3,5% para calçados e semelhantes, 4% para produtos farmacêuticos e 5% para energia elétrica, combustíveis, material de transportes etc.

Ocorre que os dispositivos legais que preveem a referida limitação foram revogados pela MP 1.152/22. De acordo com as recentes alterações por ela promovidas, a dedução passa a ser vedada apenas na hipótese em que o seu pagamento produza dupla não tributação desse rendimento ou, ainda, que ele seja efetuado a entidades localizadas em países com tributação favorecida ou que sejam beneficiárias de regime fiscal privilegiado.

Os royalties em geral, quando pagos ao exterior, podem ser deduzidos da apuração do lucro real, desde que os termos e condições de uma transação controlada sejam estabelecidos de acordo com o princípio arm’s length.

Nesse caso, deve-se levar em consideração as contribuições fornecidas pelas partes e, em especial, as funções relevantes desempenhadas em relação ao intangível e os riscos economicamente significativos associados a essas funções.

 

  1. Serviços intragrupo

Sob a égide das regras previstas na Lei 9.430/96, é corriqueira a utilização de métodos que preveem margens fixas – como a de 20% no método CPL – para a identificação do preço parâmetro na prestação de serviços intragrupo, tendo em vista a dificuldade em se identificar operações comparáveis.

Com as regras previstas na MP 1.152, os termos e condições de uma transação controlada que envolva prestação de serviços entre partes relacionadas deverão ser estabelecidos de acordo com o princípio arm’s lenght.

Uma leitura sistemática da MP conduz à interpretação de que o método mais apropriado para a identificação do preço parâmetro nas transações intragrupo é o MCL, que consiste em comparar a margem de lucro bruto obtida sobre os custos do fornecedor em uma transação controlada com as margens de lucro bruto obtidas sobre os custos em transações comparáveis realizadas entre partes não relacionadas.

Note-se, porém, que o método PIC também poderá ser invocado nas hipóteses em que os pagamentos sejam facilmente identificáveis, sobretudo quando o mesmo serviço é prestado a empresas independentes.

 

  1. Contratos de compartilhamento de custos

De acordo com o art. 26 da MP 1.152/22, são caracterizados como contratos de compartilhamento de custos aqueles em que duas ou mais partes relacionadas acordam em repartir as contribuições e os riscos relativos à aquisição, produção ou desenvolvimento conjunto de serviços, intangíveis ou de ativos tangíveis com base na proporção dos benefícios que cada parte espera obter no contrato.

Parece haver certo equívoco conceitual na denominação desses contratos, dado que as hipóteses previstas no caput do art. 26 da MP 1.152/22 referem-se não aos contratos de compartilhamento de custos, mas aos de contribuição para os custos, ou seja, àqueles que têm por objeto a repartição dos custos e riscos do desenvolvimento, produção e obtenção de ativos, serviços ou direitos, bem como a definição da natureza e extensão dos interesses de cada participante nessas atividades.

Nesse particular, é possível sustentar que os contratos de compartilhamento de custos com back office, por exemplo, somente estarão sujeitos às regras de preços de transferência caso pressuponham verdadeira prestação de serviço.

 

vii.       Das operações de dívida

A Lei 9.430/96 não permite que o contribuinte demonstre que os juros firmados nos contratos de mútuo foram pactuados de acordo com o padrão arm’s length.

Para o cálculo do preço parâmetro aplicável aos juros, a Lei 9.430/96 estabelece que a empresa mutuante no Brasil deverá reconhecer como receita financeira derivada da operação (art. 22, § 1º) o valor resultante da aplicação da (a) taxa Libor pelo prazo de 6 (seis) meses, utilizada geralmente para operações em Euro, ou (b) a cotação de mercado dos títulos soberanos da República Federativa do Brasil emitidos no mercado externo em dólares (art. 22, § 6º, I) ou reais (art. 22, § 6º, II), dependendo da moeda adotada na operação (reais ou dólares), cuja alíquota é acrescida de spread de 2,5% (art. 2º da Portaria MF 427/2013).

Na hipótese em que a mutuária está no Brasil, o cálculo do preço parâmetro é o mesmo que o referido acima, mas a margem do spread é de 3,5% (art. 1º da Portaria MF 427/2013).

A Lei 9.430/96 não exige a análise de comparáveis ou que se considere as características do mutuário e mutuante (rating, bens que garantem os débitos etc.).

Já a MP 1.152/22 alinha-se com a prática estabelecida pela OCDE, no sentido de que os termos e condições de uma transação controlada, e delineada como operação de dívida, devem seguir o padrão arm’s length.

No documento intitulado “Transfer Pricing Guidance on Financial Transactions”, a OCDE indica métodos bastante variados para o cálculo da taxa de juros de acordo com o padrão arm’s length, entre eles o CUP method (equivalente ao método PIC), em que o preço parâmetro é calculado a partir da análise de transações semelhantes (são relevantes, nesse caso, as características do empréstimo, como o montante emprestado, data de vencimento, moeda, rating do mutuário etc.) e a opinião de bancos independentes (“bankability“), método pelo qual determinada instituição financeira independente declara qual taxa de juros aplicaria à operação.

É possível que tais métodos sejam utilizados nas transações realizadas no Brasil, mas cabe à Secretaria Especial da Receita Federal regulamentar o art. 28 da MP 1.152/22, que trata da aplicação das regras de preços de transferência sobre as operações de dívidas.

Por fim, discute-se se o pagamento de juros sobre o capital próprio seria indedutível para fins de apuração do lucro real, por conta do disposto no parágrafo único do art. 28 da MP 1.152, que estabelece que “os juros e as outras despesas relativos à transação delineada como operação de capital não serão dedutíveis para fins de cálculo do IRPJ e da CSL”.

Não obstante, parece-nos que o art. 9º da Lei 9.249/95 — que estabelece que a pessoa jurídica poderá deduzir os JCP para efeitos da apuração do lucro real — é regra especial e deveria prevalecer sobre o referido dispositivo.

 

viii.      Documentação e penalidades

Para garantir a sua efetividade, a MP 1.152/22 se dedica, em capítulo apartado, à cominação de penalidades pela não apresentação da documentação e das informações exigidas para a demonstração da conformidade da transação controlada com o princípio arm’s length.

A autoridade administrativa também poderá alocar à entidade brasileira as funções, os riscos e os ativos atribuídos a outras partes relacionadas sem evidências confiáveis, e adotará estimativas e premissas razoáveis para o delineamento da transação e realização da análise de comparabilidade.

Nos termos do art. 36 da referida MP, as seguintes condutas são puníveis com multas no valor mínimo de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) e no valor máximo de R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais):

  • falta de apresentação tempestiva da declaração ou de outra obrigação acessória que vier a ser instituída pela Receita Federal, com multa de 0,2% por mês sobre o valor da receita bruta do período a que se refere a obrigação;

 

  • omissão ou declaração inexata ou incompleta das informações acerca da estrutura, das atividades e das entidades integrantes do grupo multinacional, bem como daquelas relacionadas à alocação global das receitas e dos ativos e ao IRPJ pago pelo grupo, juntamente com os indicadores relacionados à sua atividade econômica global, com multa de 5% sobre o valor da transação ou de 0,2% sobre a receita do grupo multinacional no ano anterior ao que se reportam as informações;

 

  • apresentação da declaração sem atendimento dos requisitos para apresentação de obrigação acessória, com multa de 3% sobre o valor da receita bruta do período a que se refere a obrigação; e

 

  • falta de apresentação tempestiva de informação ou documentação solicitada durante procedimento fiscal ou outra medida prévia fiscalizatória, ou por outra conduta que implique embaraço à fiscalização durante o procedimento fiscal, com multa de 5% sobre o valor da transação.

Uma vez formalizada em procedimento fiscal a discordância do Fisco com relação às bases de cálculo do IRPJ e da CSL apuradas em conformidade com a MP 1.152/22, o sujeito passivo terá a prerrogativa de retificar a sua declaração ou escrituração fiscal para a regularização dos ajustes dos preços de transferências, desde que não tenha agido contrariamente a ato normativo ou interpretativo da administração tributária, tenha sido cooperativo durante o procedimento fiscal, tenha empreendido esforços razoáveis para cumprir com as normas da MP e tenha adotado critérios coerentes e justificáveis para determinação das referidas bases tributáveis.

 

  1. Dos processos de consulta em matéria de preços de transferência

Por fim, a MP prevê a possibilidade de apresentação de pedido de consulta junto à Receita Federal para a determinação do melhor método arm’s length aplicável a transações controladas vindouras dentro do prazo de quatro anos, sob a condição do pagamento da taxa de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais).

É permitida a renovação da validade dos efeitos da solução dada à consulta por mais dois anos, contanto que seja paga uma taxa adicional de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

A consulta poderá englobar aspectos relacionados à seleção das transações comparáveis e aos ajustes de comparabilidade apropriados; à determinação dos fatores de comparabilidade considerados significativos para as circunstâncias do caso; e à determinação das premissas críticas quanto às transações futuras.

Não obstante, os contribuintes devem estar atentos ao fato de que a solução da consulta pode ser revogada, com efeitos retroativos, nas hipóteses de ter sido fundamentada em informação errônea, falsa, enganosa ou em omissão.

 

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Equipe escritório BRIGAGÃO, DUQUE ESTRADA ADVOGADOS