União não é livre para instituir por lei ordinária um novo imposto com os mesmos fatos geradores já previstos

Em 21 de julho de 2020, o PIS e a Cofins, depois de longo período de sonhos intranquilos, provocados por um sem número de contendas administrativas e judiciais, acordaram, tal qual a personagem de Kafka, metamorfoseados em um novo imposto incidente sobre operações com bens e serviços.

Com efeito, o Projeto de Lei 3.887/20 de iniciativa do Poder Executivo, apresentado à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados há aproximadamente um mês, que pretende instituir  uma contribuição social sobre operações com bens e serviços (CBS), representa  a última etapa da metamorfose das contribuições sociais sobre o faturamento, originariamente previstas no art. 195, I da Constituição Federal de 1988, em um novo imposto sobre o valor acrescentado (IVA) de competência da União Federal.

“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”

(A Metamorfose, Franz Kafka)

Apresentado como uma simples unificação de duas contribuições sociais incidentes sobre a mesma base de cálculo – o PIS e a Cofins – mas com regimes de apuração diferenciados – cumulativo e não cumulativo –, o novo projeto está, na verdade, a instituir um novo modelo de tributação pelo governo federal sobre as receitas das operações de venda de bens e serviços.

Um brevíssimo retrospecto das contribuições PIS e Cofins, que serão extintas pela CBS caso aprovado o PL 3.887/20, é importante para contextualizar essa transformação.

O PIS é um tributo anterior à Constituição Federal de 1988, que, no seu nascedouro, pela Lei Complementar 07, de 07 de setembro de 1970, tinha diferentes modalidades de incidência consoante a natureza das atividades exercidas pelos contribuintes. Com o iminente advento da nova ordem constitucional, o Poder Executivo valeu-se de decretos-leis para modificar e ampliar a base de cálculo dessa contribuição, que deram origem a uma longa batalha judicial, encerrada com o julgamento, pelo STF, do RE 148.254/RJ, em 24 de junho de 1993.

Já a Cofins nasceu como FINSOCIAL, também na vigência da ordem constitucional anterior, pelo Decreto-lei 1.940, de 1982. Os sucessivos aumentos de alíquota perpetrados por seguidas leis editadas a partir de 1988 foram considerados inconstitucionais para certos ramos de atividade, no julgamento do RE 150.764/PE. Para solucionar as inúmeras discussões então existentes, em 1991, foi editada a Lei Complementar 70, que extinguiu o FINSOCIAL, e instituiu a Cofins em sua substituição.

Ambas as contribuições deveriam incidir, de acordo com o texto constitucional, sobre o faturamento das empresas, conceito jurídico que abarca as receitas decorrentes da venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços

No entanto, em 27 de novembro de 1998, uma lei ordinária (Lei 9.718/98) veio definir faturamento como sendo a receita bruta das pessoas jurídicas, assim entendida a totalidade das receitas auferidas pelos contribuintes, independentemente do tipo de atividade exercida e da classificação contábil adotada para as receitas.

Sucede, porém, que a constitucionalidade dessa nova base de incidência – mais ampla que o faturamento – somente viria a ter suporte em uma emenda constitucional (EC nº 20, de 15 de dezembro de 1998), editada posteriormente à lei ordinária, que posicionou faturamento e receita como modalidades alternativas para a incidência das contribuições sociais a cargo dos empregadores.

Por essa razão, a assimilação foi reputada inconstitucional pelo STF no RE 346.084/PR, em julgamento concluído em novembro de 2005. Naquela ocasião, a maioria dos ministros da Suprema Corte considerou que a EC nº 20/98 não teria o poder de convalidar, nem recepcionar a lei anterior, posto que eivada de nulidade original insanável, decorrente de sua frontal incompatibilidade com o texto constitucional vigente no momento de sua edição.

Assim, uma nova legislação ordinária precisou ser editada para dar foro de legitimidade constitucional à incidência do PIS e da Cofins sobre a totalidade das receitas das pessoas jurídicas. Trata-se das leis nº 10.637, de 30 de dezembro de 2002, (PIS) e 10.833, de 29 de dezembro de 2003 (Cofins).

Tais leis, no entanto, inovaram, saindo de um modelo de tributação fixa sobre as receitas, traço característico das contribuições sociais, para criarem uma modalidade nova de incidência, não cumulativa, típica dos impostos sobre o valor acrescentado, em que certos gastos incorridos nas etapas anteriores seriam suscetíveis de gerar créditos para compensação com o valor devido sobre as receitas do contribuinte.

Não foram, porém, todos os contribuintes, nem todas as receitas, submetidas à incidência não cumulativa, pois tal regime importava em um aumento significativo da alíquota (de 3,65% para 9,25%) e só se apresentava adequado aos contribuintes que realizavam dispêndios suscetíveis de creditamento.

Com efeito, alguns setores, notadamente o da prestação de serviços, permaneceram sujeitos à sistemática cumulativa, visto que seus maiores custos – pagamento de mão de obra – eram insuscetíveis de gerar créditos.

Porém, o alcance do direito de crédito nunca foi matéria de intepretação pacífica no embate Fisco-contribuinte, prevalecendo na visão do primeiro uma concepção restritiva e limitadora desse alcance, o que acabava por tornar o acréscimo de custo fiscal daí decorrente mais um ônus a ser repercutido sobre os consumidores, além da enorme insegurança jurídica decorrente dos intensos litígios no Carf e no Judiciário.

O PIS e a Cofins não cumulativos nunca foram, pois, verdadeiramente não cumulativos, como deveriam ser para justificar o acréscimo de carga tributária exigido quando introduzida a nova sistemática.

O PIS e Cofins, ao longo dos últimos 15 anos, passaram a ser os tributos de maior relevância na arrecadação federal, respondendo por mais de 20% do total arrecadado no país. Sua importância para a União Federal tornou-se ainda mais flagrante pelo reiterado desvio de sua configuração constitucional originária, que os criou como “contribuições”, conceito jurídico que define aqueles tributos vinculados a um determinado propósito, no caso, o financiamento da seguridade social.

A desvinculação das contribuições, sucessivamente prorrogada por emendas constitucionais desde 2000, permitiu a livre utilização de parcela dos recursos arrecadados pelo executivo federal e, mais que isso, por se tratar de contribuições, nada precisou ser repartido com estados e municípios.

O alto grau de complexidade – há mais exceções do que regras –, a enorme litigiosidade provocada pelo conflito interpretativo da extensão dos direitos de crédito, a incidência sobre tributos (ICMS, ISS, o próprio PIS/Cofins), – já reputada inconstitucional pelo STF no que concerne ao ICMS em julgamento ainda pendente de finalização –, justificariam a adoção de um novo tributo em seu lugar: a CBS.

Sucede que a CBS que se propõe tem traços característicos de impostos preexistentes. Nunca é tarde para recordar que o que define a natureza jurídica de um tributo é o seu fato gerador, sendo irrelevantes para qualificá-los a sua denominação e o destino de sua arrecadação.

No caso da CBS, a lei determina logo em seu art. 1º que ela incide sobre operações com bens e serviços e tem como fato gerador, nos termos do art. 2º, o “auferimento da receita bruta de que trata o art. 12 do Decreto-Lei nº 1.598, de 26 de dezembro de 1977, em cada operação.”

Logo se vê que os artigos do projeto de lei acima referidos não dialogam bem entre si. Enquanto o art. 1º demonstra claramente que a instituição da CBS pressuporia o exercício de competência que a União Federal não possui – posto que a materialidade da nova contribuição desborda daquelas admitidas pelo art. 195, I, da Constituição Federal – o art. 2º, de forma absolutamente contraditória, tenta circunscrever a sua base de cálculo ao auferimento de receita bruta, o que apenas pode ser interpretado como uma tentativa de conferir-lhe constitucionalidade.

Ora, auferir receita em operações com bens e serviços nada mais é que o bom e velho faturamento previsto nas legislações pretéritas do PIS e do FINSOCIAL. Ou seja, é o preço do bem e do serviço que será objeto de tributação. Se o preço de venda do bem ou do serviço é tributado pela União por uma incidência não cumulativa nada mais se está a fazer do que criar um tributo sobre o valor acrescentado na venda de bens e serviços. Só que essa tributação foi constitucionalmente outorgada aos estados e aos municípios, respectivamente, pelo ICMS e pelo ISS, e não à União.

Note-se que ainda que a União viesse a lançar mão da competência residual que lhe foi outorgada pelo constituinte originário (art. 195, §4º c/c art. 154, I, da CF/88), seria absolutamente questionável a criação de tributo cuja materialidade abarque operações circulatórias de bens e serviços.

Alguns dirão que isso de fato já ocorre hoje e contribuições podem ter a mesma hipótese de incidência de impostos. Mas serão mesmo verdadeiras contribuições quando têm o produto da arrecadação tredestinado, quando tomam de empréstimo regimes próprios de impostos como a não cumulatividade?

Outros afirmarão que a CBS que se propõe será como um tributo sobre valor acrescentado dual, de inspiração canadense, que conviverá paralelamente àquele tributo que vier a ser instituído em substituição ao ICMS e ao ISS.

Mas a União não é livre para instituir por lei ordinária um novo imposto com os mesmos fatos geradores daqueles previstos na Constituição. Para isso ser válido é necessária uma emenda constitucional e não um arremedo legislativo que somente onera, com uma alíquota estratosférica de 12%, os contribuintes e consumidores, predeterminando a fatia da União do futuro IVA nacional.

Cabe ao poder legislativo federal exercer o mandato que lhe foi outorgado pelos eleitores. Não é mais possível aceitar essa constante fraude à Constituição. Como ensina a história, o regime parlamentar nasceu de uma tensão fiscal, e é em momentos de tensão fiscal que o poder político mais precisa ser sabiamente exercido.

Que não se produza um inseto monstruoso.


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